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domingo, 13 de setembro de 2015

VIAJANDO COM O PODER...

....e não achando graça nenhuma!


Não me lembro de quantas vezes viajei de trem pela Índia à fora. Foram várias. E sempre de primeira ou segunda classe, porque sem falar a língua, sendo mulher e quase sempre sozinha é mais prudente.
Nunca prestei atenção e nem nunca vi que tinha uma campainha na cabine pra chamar algum funcionária da Cia. Nunca ninguém tocou essa campainha antes, eu estando junto.
Esta semana voltando de Delhi pra Bodhgaya, cheguei primeiro na cabine. Estava vazia. Cabine pra quatro pessoas, primeira classe. Poltronas que viram camas.. Me ajeitei e daí a pouco vejo um movimento. Muita conversa, muitos homens entrando, me observando (o povo, o inimigo...rsss) procurando sei lá o que, avaliando o cenário.
Entram dois sujeitos carregando as malas e logo depois, falando ao celular, claro, entra “o poder”, todo de branco, linho impecavelmente bem passado, calça e túnica, super “esticadinho”, sapato social de boa qualidade, cheio de anéis e a turma atrás.
Cumprimentar quem iria ser sua parceira de cabine nem pensar.
E apareceram todos os funcionários responsáveis pelo vagão. Cada vagão tem seus responsáveis. E conversam e pedem água, e falam ao telefone e eu só olhando.
Poucos minutos antes do trem partir vieram as despedidas. Todos passando as mãos nos pés do poder. Aqui é sinal de respeito. Acho lindo! E ele sem manifestar nenhum sinal de atenção a todos.
Ficou ele e um rapaz.
Logo um funcionário abre uma mesinha pra servir um lanche. Destas tipo de bar, pequena. A minha ao lado da deles.
A essa altura o poder já devidamente instalado na poltrona bem à vontade, sem sapatos, normal aqui, com a mão no saco. Coçando. Hábito de muitos homens e pra ele deve ser mais normal, porque com certeza faz parte do seu trabalho.
O rapaz sem a menor cerimônia coloca os pés sobre a mesinha dele. Colada na minha.
Aí, não mais que de repente me sobe no sangue o meu lado “respeito é bom e eu adoro”.
Virei pro poder e disse: desculpe, mas vocês não estão sozinhos nesta cabine. Assim não vai ser possível.
No mesmo minuto ele disse:
- O que você disse?
Eu disse:
- O senhor ouviu.
Mais do que depressa o rapaz tirou os pés de cima da mesa e ele largou o saco.
Mesmo aqui na Índia, onde muitos homens tem pouco respeito pelas mulheres, eles sabem muito bem quando estão sendo inconvenientes e passando dos limites.
E sabem também com “qual mulher” eles estão lidando.

Tem dó!!!!  Vai pro raio que o parta!

E do nada ele disse:
 - Este é meu filho. Ele é engenheiro.
Eu:
 - Bom pra ele.
Daí pra frente foi uma sabatina. Ele perguntou tanto, que eu não conseguia me concentrar no livro que tava lendo.
Como que por milagre eles me enxergaram e se interessaram pela minha pessoa e pelo que eu tava fazendo na terra deles.
Foi tanta pergunta que peguei um papel e comecei a escrever pra não me esquecer de nada, porque logo pensei em contar pra você que persegue este blog.
Não exatamente nesta ordem, mas respondi a tudo isso.
Onde fica o Brasil?  Ele olhou pro filho, tipo você que estudou deve saber. Ele sabia mais ou menos. Disse que achava ser na América. Acrescentei. América do Sul. Só Deus sabe por que ele se encanta com o Paraguai. Perguntou também pelo Rio de Janeiro.
Eu já contei aqui o tanto que o indiano gostaria de não se parecer com indiano, queria ter a pele clara. Ele não fugiu a regra. Perguntou a queima-roupa.
- Você acha que me pareço indiano?
Eu disse que sim. Apesar dele ter a pele mais clara, mas os olhos e o bigode não negavam. Ele insistiu e disse com qual outro povo ele poderia se passar por. Eu disse, olhe, você pode passar por grego, talvez português, espanhol. Ele agradou de espanhol e queria saber de onde é esse povo. Eu expliquei e ele se encantou, sem ter noção de onde fica a Espanha. Mas é Europa.
Comecei falando sobre a campainha pra chamar funcionário e me esqueci... Até essa hora ele deve ter chamado o pobre povo umas cinco vezes. E a campainha é um horror... Toca alto e tem som de ambulância. Quem fica perto dela deve disparar o coração a cada chamada.
Notei que ele é meio hipocondríaco. Uma das pessoas que veio se despedir dele olhou sua temperatura e o acalmou dizendo que ele tava com cor boa. Aliás me lembrei agora, uma das primeiras perguntas foi se eu tinha alguma doença. Falou de diabetes. Talvez ele tenha. Quando disse que eu era boa feito coco e que não tinha nada, senti uma ponta de inveja...rs.
Aí apareceu de não sei onde um mosquito, eu abanei ele, mas o poder entrou em pânico. Por conta desse mosquito tocou a campainha umas quatro vezes. E vinha um e abanava e outro sacudia as cortinas pra ver se o mosquito aparecia e ele falava:
- Como é possível!  Um mosquito!
Uma hora eu disse: porque você tá tão incomodado com o mosquito? A Índia é cheia deles. Diante do olhar de espanto dele amenizei dizendo: o mundo tá cheio de mosquitos... rsrs...
Aqui eles tem pavor de dengue. Deve ser um atestado de morte ser mordido por um mosquito contaminado.
Enquanto o pessoal não trouxe um aparelhinho daqueles que ficam na tomada pra espantar o mosquito ele não ficou em paz.
- O que eles comem no seu país? Faz frio ou calor? O que vocês exportam? Era uma pergunta engatilhada na outra.
Eu tava com um anel fantasia, prateado com um quadradinho azul e ele perguntou se era caro. Eu disse que não e ele me mostrou um dele de rubi e ouro e disse que era muito caro. Eu disse:
- Rubi é caro. Ele se espantou por eu conhecer a pedra. Aí arrasei falando os nomes das pedras dos outros três anéis dele. Bobão!
Eu fingia estar concentrada no livro, mas ele não deixava. Sentia o olho dele em mim e a armação de uma nova pergunta.
Todos os funcionários do trem conheciam ele e falavam como se ele fosse realmente alguém muito importante. Muito superior a todos eles.
Ele tomou vários remédios nesse tempo. E pra cada remédio pedia uma garrafa de água. Garrafa de um litro. Tomava o remédio e devolvia a garrafa. Devolvia também quando achava que não tava gelada.
Quando falei sobre a escola ele me cravou de perguntas e aproveitei pra dizer sobre o descaso do governo para com a educação e do estado do Bihar em geral. Muito pobre e abandonado.
Ele deu várias explicações sobre as dificuldades de governar.
Falei sobre a visita do Primeiro Ministro Narendra Modi em Bodhgaya naquela semana e ele sem cerimônia disse que não gosta do trabalho do ministro. É contra a forma de governo dele. Nem entrei em detalhes porque não entendo a politica do meu pais e não vai ser no país do outro que vou dar palpite.
Sobre a escola falei o que vivo aqui.
Ele chamou uns dois funcionários do trem e falou sobre mim. Me encheu de  elogios, sobre sair do meu pais pra vir aqui ajudar o povo dele.
Aí veio o convite pra ir visitar a cidade dele, ficar na casa dele, com carro a minha disposição.
E insistiu muito. Disse que também se ocupa de escolas por lá (a cidade fica a umas três horas de Bodhgaya e ele podia aproveita e frequentar, né?). Falei que talvez, se desse, por que não? Sabendo que não irei nunca. Nenhum interesse.
Ah! O filho também, falou muito, e eu entendia 50% do que ele dizia. Um inglês com o sotaque mais forte que já ouvi. Eu dizia pra ele falar devagar porque não tava entendendo nada e ele ria. Tipo não entendo como você pode não estar entendendo...
Ele viu que meu livro era em francês e ficou muito impressionado.
Claro que perguntaram minha idade e não acreditaram. Devo aparentar realmente mais nova do que sou. Todo mundo diz o mesmo... rs...
Pra não encompridar mais o caso, vou pular o jantar e já partir pra hora de dormir.
Caí na bobagem de dizer que o ar-condicionado tava forte, muito frio. Aí o hipocondríaco pirou o cabeção.E dá-lhe a tocar a sirene, e os homens vieram e vieram e trouxeram jornal e durex e fecharam as saídas do teto e foi um quiproquó. E a campainha tocou mais umas três vezes pra trazerem mais durex porque o ar tava vazando. Senti que a preocupação não era exatamente comigo. Era com a hipocondria dele...rs...
Ainda bem que tenho sono pesado, dormi e nada mais vi. Só acordei com o funcionário batendo na porta avisando que Bodhgaya tava chegando e esperando sua gorjeta.
Sai e deixei os dois dormindo profundamente.
E ele me deu um cartão. Né pouca bosta não. O que ele tem de poderoso tem de bobo.
Ah! Em meio ao monte de chamadas pra que todos os “problemas” fossem resolvidos, saí pra ir ao banheiro e um funcionário olhou pra mim e levantou a sobrancelha balançando a cabeça... Aquela expressão que em qualquer lugar do mundo tem o mesmo significado.
Fiz o mesmo e ele sorriu.

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